BEIRE

Os "miosótis" do Calvário...

1. Minhas experiências de Emaús... São momentos privilegiados estes de comunhão com GAIA - a nossa Mãe Terra! Sempre me sinto naquilo que gosto de chamar "minhas experiências de Emaús" - o peito a tornar-se-me pequeno para tanto coração agradecido (Lc 24, 13-35). E é então que o meu vulcão interior começa a jorrar. Empurrando-me a que, quanto antes, o amarre bem amarrado numa folha de papel. Daí o meu saudoso Do Coração para o Papel, nas páginas d'O Mensageiro de Sto António. Porque é assim que gosto de olhar alguns dos meus escritos. Coisas que me saltam, assim em momentos de comunhão - seja com GAIA, seja com o Creador de Gaia. Preciso de escrever do coração para o papel. Ou, numa outra perspectiva, como quem reza - no bonito dizer de Pai Américo.

Recordo. Íamos a caminho de Finis Terrae, nos Caminhos de Santiago. Sozinho, montes fora, em silêncio e quietude, de que sinto necessidade, como de pão para a boca, diria a minha mãe, lá no seu jeito de analfabeta mas sábia mulher do campo. O grupo vem mais atrás. Chama-me a atenção um tufo de florzinhas que me são particularmente queridas - os miosótis, não te esqueças de mim... Que, no inglês, dão por forget me not e no espanhol por no me olvides. Lembrei a Isaurinha, mãe dos meus filhos, que nos deixou fez agora 29 anos. Foi da boca dela que, pela primeira vez, ouvi esta lenda dos miosótis. Dizia ser uma lenda alemã. Hoje, sei que há imensas lendas sobre os miosótis. Depois, sempre que os via, trazia-lhe um raminho. Era como se, também dos miosótis, se pudesse dizer o que da hera se diz: Quem pela hera passou // e uma folha não cortou // do seu amor não se lembrou... Espero o grupo. Chamo o Zé Monteiro e o Catarino - nossos fotógrafos, sempre em serviço do grupo. Mostro-lhes a flor. Conto a lenda e peço para me fazerem uma fotografia. Com sua licença, aqui vo-la deixo. Na certeza que o real é sempre muito mais bonito...

2. Mas vamos à lenda dos miosótis. Foi no princípio do mundo. Quando o Deus-Criador descobriu que, da doce natureza do seu SER-AMOR, fazia parte o derramar-Se (amor difusivum sui!...). Espraiar-Se. Comunicar-Se. Ser útil. Porque, como depois diria Pai Américo, "o homem só, é um doente. Não ama. Explora". Pois, lá no princípio, quando ISSO aconteceu, começou a ingente tarefa (ainda não acabada...) de crear o mundo (1). E vai daí, atarefado com tanta maravilha que criou nesta Terra, deixou para o fim o desmedido trabalho de pintar o céu. Finda a tarefa, ia já de malas aviadas, ouviu uma vozinha débil a chamá-l'O, não fosse Ele esquecer-se... - Miosótis!... E aquela vozinha débil repetia-se, cada vez com mais insistência - miosótis, miosótis, miosótis!!!... Não Te esqueças de mim!...

Aí, o Creador, que tão bem percebia o alemão, voltou atrás a ver. Amor à primeira vista. Enterneceu-se e encantou-se com aquela debilidade. E tanta simplicidade, assim perdida no meio do mato. Mas, já não tinha mais tintas. A sua tarefa tinha-se acabado. Pesaroso, olha o pincel, ainda húmido, com que acabara de pintar o céu... E não hesita. Pintou o miosótis da cor do céu... E, hoje ainda, quem gosta das cores do céu, gosta dos miosótis... Por isso os põe, no monte, para um azul carregado, quase turquês, a aguentar todas as intempéries... Ou os põe nas linhas de água, mais suaves, para amenizar os seus passeios pelo campo em dias de calor...

3. No coração do Calvário. De pronto, salta-me o Calvário. Com suas linhas de água e suas duas matas - a mata de dentro (onde está a Aldeia dos Doentes) e a mata de fora (onde está o nosso Campo Santo, a guardar as cascas dos pintainhos que daqui nos voaram para o Céu!). Recordo que, há bem pouco, em horas de vistoria aos meus chuchus, numa das zonas húmidas, vi montões de miosótis. Cortei um raminho. Trouxe para mostrar. Contei a lenda. Chamei a atenção para a diferença entre os miosótis das zonas húmidas e os miosótis de um seco, fero e estéril monte, no poético dizer de Camões. Os primeiros, são de um azul claro, cor de céu, em dias pouco ensolarados. Bonitos sim, mas nada dos miosótis do monte escalvado. Outro azul. Outro encanto.

De pensamento em pensamento, de emoção em emoção, vejo os nossos doentes, um a um. Vejo os nossos rapazes, um a um. Os que ficaram connosco, a dar-nos muita força para continuar. Mai-los que, em capas de legalidade, nos foram roubados. Vejo-os. Invade-me a alegria deles (ainda em forma de esperança de que já vão voltar...). Ouço o grito silencioso de cada um - Quando é que vamos para o Calvário?! Ouço a insistência da Alice (invisual), que nunca conheceu outra cama, outra mesa, nem outro coração senão o do Calvário. - Lá é que é a minha família -, repete a cada passo. E a Maria do Carmo: - Eu sinto-me morrer aos poucos!... - Destacam-se-me os gemidos da nossa Rosinha - essa que foram dar com ela... (Ver O GAIATO, n.º 1961, de 11.05.19).

Ouço-os, a rachar-me o coração! Miosótis!... - Não te esqueças de mim! Não vos esqueçais de nós. De cada um de nós, aqui exilados. A sofrer de solidões do coração. Ouço-os! Cada um com aquele seu sofrer que só Deus sabe. Deus, SER-AMOR - difusivum sui. À espera de quem Lhe bote uma mãozinha. Porque Ele só tem as nossas mãos, os nossos pés, as nossas bocas, os nossos corações...

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(1) - Já lá atrás expliquei a clássica distinção entre o crear (a partir do nada) e o criar (a partir do existente). O crear é exclusivo de Deus; o criar é próprio do homem, sempre que se deixa tocar pelo divino que o habita.

Um admirador