BEIRE

Eu gostaria de morrer assim

Urge "ajudar a morrer com dignidade". Gosto de ter aprendido a ir encarando a morte sub specie aeternitatis. À luz da eternidade. À luz de Deus. À luz do Trans+(as)cedente. Como uma díade, de que também faço parte.

Díade, vida e morte! Cara e coroa de uma mesma moeda. E tenho-me dado conta de que o que mais me faz sofrer aqui no Calvário é o medo de que os poderes políticos (com a anuência e/ou o silêncio dos poderes religiosos?!...), talvez sem grande consciência disso, estejam a promover a desumanização da morte. Num dito Plano Nacional de Saúde! A título de "uma maior qualidade de vida até ao final". Não há dúvida de que esse inferno que, tantas vezes, somos nós uns para os outros, está mesmo "cheio de boas intenções"...

Das minhas doces memórias do coração, destaco um curso que, criado pela FITI (Federação das Instituições de Terceira Idade), era ministrado para trabalhadores do Apoio Domiciliário e das Instituições de Terceira Idade. Chamávamos-lhe Ajudar a Morrer com Dignidade. Gostava de o dar em co+monotorização com a Enf.ª Luiza Gomes Pedro que, penso, com a D.ra Raquel Ribeiro, encetaram e gizaram isso a que, hoje, chamamos Segurança Social. Pertencia à Direcção da FITI e foi um dos cérebros da criação desse curso. Ela comandava os aspectos técnicos e eu os aspectos relacionais. Sem tempos pré definidos para cada um. Funcionávamos também como uma díade. Sem prejuízo da harmonia do curso, entrávamos quando a matéria no-lo aconselhava. E foi assim que numa sessão, nos Franciscanos, em Leiria, uma participante põe uma questão à S.ra Enfermeira, que estava no uso da palavra: Fala muito em 'morrer com dignidade'. Gostava que explicasse o que é isso de dignidade. Logo a Sra Enfermeira dispara: — Ali o nosso especialista no significado das palavras vai já explicar isso para nós todos. Sem preparação prévia, deixei sair aquilo em que já acreditava. Porque sempre gostei de procurar entender esse mistério do REAL que teimosamente se esconde por detrás das palavras. Não quero merecer aquela acusação de Hugh Prather - "As pessoas desonestas acreditam mais nas palavras do que na realidade"...

— (...). O que é "ISSO" de dignidade ?!... Fui ao quadro, escrevi a palavra dignidade e perguntei se ela é uma palavra simples ou composta... Voltei a escrever d'+IGNI+(d)ade. Perguntei o que era a chave de IGNI+ção?!... Depois foi só desmontar os diferentes elementos constitutivos e insistir na raiz ignis — fogo... Fui buscar a imagem do cadinho (ou crisol)1 que purifica o ouro, libertando-o de toda a ganga que o macula. E disse que foi isso que o Criador fez connosco - deu-nos o poder de tornarmo(-nos) Filhos de Deus (Mt 5, 1-12), à Sua imagem e semelhança (Gn 1, 26). Somos, pelo menos no mundo até hoje conhecido, a última palavra nova da Criação, no longo processo evolutivo. E cada um de nós é assim uma Palavra Nova e Irrepetível do Deus do Universo, neste Universo de Deus. Ele nos fez do barro, mas destinou cada um a tornar(-se) uma pérola preciosa na construção daquela Nova Terra a que, por nascimento, todos aspiramos (Ap 21,5). Isso a que Jesus chamou "Reino dos Céus", "Reino de Deus", "Reino onde Deus (Paz- Justiça-e-Amor) possa reinar". Enfim, uma Nova Sociedade em que jamais apareçam os ditos poderosos que, no dizer do salmista, devoram os outros como cães... (Sl 22, 16; 68, 23). Muito da minha paixão pelo estudo deste sedutor mas complexo mundo das relações intra e inter pessoais começou a revelar-se-me no decorrer dessas experiências desafiantes.

Deitado, mesmo ao ladinho do irmão... Acredito mesmo que "viver é colher o seu próprio cacho de oportunidades na vinha da aventura". E, porque acredito, agarrei com unhas e dentes uma oportunidade de ir à Holanda. Ver as tulipas e, para mim, ver algo novo do muito que os judeus, escorraçados de Espanha e de Portugal, ali foram criar. Mais até crear do que criar! Enterneci-me ao visitar a Sinagoga Portuguesa e o Museu Judeu, em Amesterdão.

Levava comigo o sonho de visitar o Museu de V. van Gogh e a Casa de Anne Frank. Pois. Lotação esgotada. Num e noutro lado. Deveríamos ter marcado antes... E, porque fiquei a ver navios, botei mão do que pude. Um livrinho das Últimas cartas ao meu irmão Théo. Esse que, sempre presente e atento, depois de uma tentativa de suicídio, já próximo da morte de Vincent, deitado a seu lado e segurando-lhe a cabeça, ouve este desabafo: "Eu gostaria de morrer assim"!...

Da Holanda, de imediato, salto-me para o Calvário. Para melhor o compreender. Para mais o amar. E, do meio do turbilhão, salta-me a nossa Rosinha - essa que, há bem pouco, nos morre longe d'os seus, sem ninguém que a amasse. Ao menos por respeito pela d'IGNI+(d)ade que também nela habitava. Dói-me. Morreu assim, porque era incapaz de oferecer resistência à prepotência daquele anónimo cumprimos ordens que, no dia 07 de Novembro do ano passado, no-la levou daqui. Depois, não resistiu à falta do carinho e cuidados de boca que a mantinham à tona d'água, naquele mar revolto que era a sua vida.

Prometo voltar. O caso da nossa Rosinha é um documento comprovativo. Com promessas de um Paraíso, mete-se uma pessoa num inferno...


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1 Crisol!... Crise!... Cristal!... Cristalino!... De cris, substância química (muito rara, ao que parece) que, libertada por elevadíssimas temperaturas, decompõe a matéria até à exaustão. Daí, a im+PORT+ância das crises no desenvolvimento da nossa personalidade. São elas que nos purificam da ganga que nos impede de CRESCER(-SE).

Um admirador