BEIRE

Até o funeral foi "bonito"…

Histórias de Gaiatos que deixam rasto... Conheci-o ainda ele era um dos muitos gaiatos com quem a vida me ia cruzando. Fazia parte de um grupo de Paço de Sousa que, nas férias grandes, depois da morte de Pai Américo, ia a Singeverga, para fazer retiro. Depois, a vida quis que, a partir de Beire/Calvário, aos domingos de tarde, lá ia ele visitar-me a ali ao lado, em Barrimau, onde eu era na casa de meus pais, em convalescença de uma tuberculose incipiente. Sempre levava consigo um grupito de Gaiatos Especiais de Beire. A princípio, ia mesmo ver-me. Depois... o ir visitar o Frei Simeão já era um pretexto para ir visitar a Fernanda, minha irmã mais nova, com quem veio a casar, mais tarde. E foi assim que, desde um zé ninguém, o fui vendo fazer-se um senhor. Vindo da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, naqueles tempos do arranque do Calvário e Casa do Gaiato de Beire, ele foi um braço direito de P.e Baptista. Bem humorado, trabalhador. Um habilidoso - pau para toda a colher. Cozinheiro encartado no Hotel Infante D. Henrique, chefe maioral, padeiro, tractorista e homem do campo, fez de tudo o que é preciso fazer-se em Casas como esta. Porque, muito pequenito ainda, chegou até nós desde a freguesia de Sedielos - Peso da Régua - ele era o nosso Sedielos. Cresceu(-se). E, porque se cresceu direito, muito cedo virou o senhor António Henriques. No seu funeral, a bandeira do G.D.C.R. de S. Luís abraçou-lhe a urna. Momentos antes, o Zé António - Filho mais velho - pedia-me uma palavra de gratidão para a Juventude de S. Luís que tanto o acompanhou nos seus 35 anos de viuvez.

E assim se marcam vida!... Olho aqueles meus tempos de aprendiz de beneditino. Foram dez anos de menino e moço a fazer uma cadeira que, depois, se me revelou de extrema importância nesta Universidade de Vida. Universidade em que, gostosamente, ainda me sinto aluno empenhado. Porque não deixei de ser um teimoso aprendiz de vivente. Foi aí, Singeverga, que conheci e me apaixonei pel'O Gaiato de que me tornei leitor atento. Já com laivos de leitura espiritual e/ou de meditação. Aquele "escrever como quem reza" (Pai Américo) marcou a minha vida toda. Ainda hoje é meu lema a que tento ser fiel. Abria-me a Novos Horizontes de Ser. Se daquelas vidas dos filhos da rua se podia fazer "portugueses de lei", quanto mais de um labregozito nascido de pais lotaria... Comecei a sonhar mundos que já não cabiam nas cercas de um mosteiro. Comecei a perceber que é o sonho que comanda a vida. Sempre que podia, conversava com P.e Carlos. Dava-me asas. Se houvesse alguma oportunidade, visitava Paço de Sousa, Miranda e Setúbal. Aí conheci P.e Manuel António, P.e Zé Maria, P.e Baptista. Todos eles muito jovens, pouco mais velhos do que eu. Recentemente ordenados, davam a sua vida a seguir Pai Américo. Conheci também o Ernesto Pinto, cuja rubrica quinzenal n'O Gaiato - Filhos de pai Incógnito - sempre lia com paixão. Começava a sofrer a pouca sorte desses filhos da rua, nascidos sem família... Conheci também o Daniel - cronista de Paço de Sousa, cuja escrita me intrigava. Pela mão dele, ainda em Singeverga, comecei a ver-me em letra de forma na Voz dos Novos, um jornal interno criado por ele nessa altura. E quando P.e Carlos - imediato sucessor de Pai Américo - decide proporcionar aos mais velhitos um Retiro para reflexão sobre a Nobre Arte de Viver, passo a hospedeiro dos gaiatos. A quem, na hora das refeições, cuidava de que nada faltasse aos meus meninos. Depressa passei a ser, para eles, o frei Papinha, do filme D. Camilo e o seu Pequeno Mundo que marcou época. Era uma forma gaiata de me dizer que me queriam.

Foi assim que conheci o Sedielos. Acabei por ser cunhado dele. E, com ele, acabei por me apaixonar pelo Calvário. Agora, neste acto de entrega a Deus, dizemo-nos uns aos outros que era um homem que amava o Calvário e sempre se preocupava em pacificar a todos. Que "bonito" um funeral assim!

(...) Um só que fosse, mas eles são tantos!... A Eucaristia (Acção de Graças por esta vida que nos foi doada!) foi COM+celebrada pelos quatro sacerdotes que lhe eram mais ligados - o Pároco e os três da Obra da Rua aqui mais de perto - P.e Telmo, P.e Fernando e P.e Júlio, que veio de Paço de Sousa. Da capela mortuária para o cemitério paroquial segue o cortejo fúnebre. Um mundo de gente, familiares e amigos. Gente que, num grupo silencioso, atesta que nós somos o rasto da ternura que deixaste. Perdidos entre o povo, vão os filhos, os netos, os genros e a nora. Mai-los amigos gaiatos especiais de Beire a quem dedicou boa parte da sua vida. Uma vida de ninguém que, recolhida ainda a tempo pela Obra da Rua, foi capaz de aprender a dar Mais Vida e Vida em Abundância (Jo 10,10). Chegou o momento de mudar-se para uma vida na Transcendência. Saboreio o mistério: na trans(As)cendência!!! E a minha Fé renova-se. Cresce e arde em febre de comunicar(-se). Porque o homem só é um doente. Não ama. Explora.

Sozinho entre as gentes, sigo a ruminar. Vejo o Carocha chorar, com a mão no caixão. Ouço o Tirapicos - Ele vinha ver-me e perguntava como estou... Logo me aparece Pai Américo com sua tese de sabor divino: É mais barato prevenir crimes do que suportar criminosos. (...). Eles eram da rua. Menos afluência ao banco dos réus. Mais portugueses de lei num Portugal melhor. (...). Um só que fosse. Mas eles são tantos! Eles são tantos. 

Um admirador