BEIRE

Um Calvário sem "transcendência"?!…

Alegria, na esperança de que... Deixai-me continuar a digerir convosco as Bodas de Caná - Ver O Gaiato n.º 1955, de 16-02-19. Porque ainda me sinto dividido. Não entre dois amores, do clássico de Marco Paulo. Como S. Paulo, também eu já vou sabendo em Quem acredito (2 Tm 2,12). Mas, verdade verdadinha que também trago comigo, aqui bem fundo, dois sentimentos reais e fortes. Sinto-me mesmo habitado por essa alegria que me vem da esperança de que... (Esperança! Isto é, a posse actual de um bem futuro). Ao mesmo tempo, também por cá anda ainda um certo receio de que nos deixemos vender a alma ao diabo... Ouço que precisaremos ainda de mais alguns meses para que nos deixem em paz. Nos devolvam aqueles/as que, por razões nada claras, nos levaram daqui. Eles são nossos e nós somos deles. Por isso alguns definham(os) tanto, sob o peso dessa forçada separação. Eles não são do Estado, sejam quais sejam os seus tentáculos. Porque "ninguém é de ninguém mesmo quando se ama alguém". Nós não somos do Estado. Cidadãos sim. Portugueses de lei, sim. Mas não somos coisas que se mudam de sítio a bel-prazer de quem quer. Só porque lhes dá na real gana. Sob a capa de um anónimo cumprimos ordens. Não senhor. Porque o amor também tem as suas leis. Sei que esta linguagem já não é moderna. Corre riscos de envelhecer. Mas, graças a Deus, ainda há muito quem entenda destas loucuras do Evangelho.

Rumino: mais alguns meses! Para que nos reconheçam como já licenciados para o efeito. Um efeito que, no caso do nosso Calvário / Beire, não é com certeza o mesmo dos licenciadores. Porque o nosso efeito não é só uma residência ou um apoio social (ditos de melhor qualidade) para os "carenciados sociais". Não. O nosso efeito também é isso, mas pede ainda mais. Pede toda a fidelidade a um carisma1, legado por Pai Américo: "O Calvário! É um nome tirado do Evangelho. (...). Fazem hoje falta no mundo estes nomes, estas ideias, estas Obras humanas de sabor divino. Um lugar onde cada paciente leve, sim, mas não arraste a sua cruz dolorosa". Aclaro-me: O que está em causa não é só a fidelidade a Pai Américo. Morreu há sessenta e três anos. E, entretanto, a sociedade evoluiu. E nem tudo é mau nessa evolução. Antes pelo contrário. Há muitos valores novos que, sem confessarem isso abertamente, foram beber à mesma fonte - o Santíssimo Nome de Jesus, a quem a Obra da Rua está dedicada.

O que aqui está em causa é a fidelidade à Fonte de onde Pai Américo bebia e pela qual se sentia impelido (sic). Para fazer o que fez, naquele tempo. Com uma palavra nova, em matéria social. Impelido a dar a vida por aqueles a quem, na sociedade de então, a vida lhes era negada de tantas maneiras. E, hoje, digam lá o que disserem as autoridades que tanto gostam de falar do que não entendem: para muitíssimos casos - os das periferias, que são tantos!... - o Estado, apesar da grande evolução social, ainda não encontrou uma resposta condigna.

ISSO de uma "resposta condigna". O Estado não tem nem pode ter. Porque não é da sua conta. Uma resposta (RES+posta) capaz de respeitar o homem integral. Capaz de respeitar aquela d'IGNI+dade própria dos filhos de um Rei-Servidor. Devorado pelo fogo (ignis!) do amor pelos últimos (Mc 10, 35.45). Esse Rei - Príncipe da paz! - que, ainda vive no actuar dos Seus seguidores e lhes proporciona uma Paz, uma Alegria e um Bem Estar que segurança nenhuma deste mundo pode assegurar (Jo 14, 27-31). Porque, no Estado, o que hoje é assim, amanhã já é assado. E todos os Estados estão pendentes de um Orçamento de Estado e de milhentas pressões a tentar levar esse orçamento nesta ou naquela direcção - tantas vezes maculadas pelos interesses mesquinhos de pressões ideológicas e/ou económicas.

Ora Cristo Vivo, no actuar daqueles que O seguem impelidos pelas mesmas loucuras do Evangelho, (Pai Américo!) não tem orçamentos... Como todos os outros cidadãos, Cristo Vivo paga o que tem de pagar. Não foge a impostos (Mt 17, 24-27) nem cede a pressões. Só conhece a pressão d'as periferias, onde agonizam os últimos, que Ele sempre olha como os primeiros no seu projecto (PRO+jecto!) de atirar para a frente! Para uma sociedade onde também Deus possa reinar. Onde César tenha o que é de César e Deus tenha o que é de Deus (Mt 22,21). Sem ninguém a oprimir ninguém. Por isso Cristo é de ontem, é de hoje e é de sempre.

Tão verdade o que hoje mesmo ouvi cantar na Celebração da Eucaristia: Não podemos caminhar com fome e sem amor... Verdade que nenhum homem vive sem pão. Mas continua a ser também muito verdade que nem só de pão vive o homem... Qualquer homem. Qualquer cidadão - dos que fogem aos impostos e dos que cumprem com as suas obrigações. Conscientes ou não de que os nossos impostos são para dar vida ao Estado, de que todos necessitamos.

Venha-se lá de que confissão religiosa se venha, (o homem é um animal religioso), o certo é que, em certos momentos da vida (que sempre anda e desanda,...) todos precisamos d'essa(s) Palavra(s) que dá(ão) Mais Vida e Vida em abundância (Jo 10, 10). Precisamos. Todos. Sobretudo quando no seu andar e desandar, a vida chega mesmo a tresandar o impossível.

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1 - Dou aqui à palavra carisma não o significado comum de "coisa" (graça?!) que dá a um e não dá a outro... Não senhor. Aqui, carisma quer dizer: Pegar num dom que Deus dá a todos e pegar nele e desenvolvê-lo para o pôr ao serviço daqueles que mais dele necessitam.

Um admirador