BEIRE

Um Calvário sem "transcendencia"?!...

A prática diária da higiene mental... Faz parte da minha higiene mental/espiritual diária a ruminação do Evangelho do dia. Mais: gosto de o saborear também à luz de um comentário de qualidade. No domingo passado foi o evangelho das Bodas de Caná (Jo 2, 1-11). Talvez porque as tempestades caídas sobre o Calvário, nos meses de Novembro / Dezembro 2018, ainda andam cá dentro a mexer comigo muito a sério, a minha ruminação desse dia de Domingo esteve muito condicionada por isso. Não fora assim, eu não seria filho de boa gente... Porque o povo sabe do que diz - Quem não se sente não é filho de boa gente. Mas a verdade é que também a mim me saiu a lotaria dos pais, como bem se expressou R. Pausch, na su'A Última Aula, que anda agora a correr o mundo, já com mais de 5 milhões de exemplares vendidos. Também eu não podia ter tido melhor sorte. Também me saiu a lotaria dos pais... Deus louvado !

Gosto de ver as coisas à distância necessária. Temo que a obsessiva aproximação da árvore me impeça de ver, contemplar e saborear a imensa riqueza da floresta... Assim, para lá de "Heroínas do Bem e do Belo" (ver O GAIATO nº 1954, de 02.02.19), já dei comigo a rasbiscar uma crónica a que darei o nome de As Bênçãos de um Conflito... Porque, realmente, "aquilo" dá mesmo que pensar. Estou convencido de que "aquilo" que está em causa são as nossas pouco afinadas relações de poder. Exactamente como in illo tempore. Entre Jesus e os poderes constituídos - pela Religião e pelo Estado. E a questão que se Lhe punha a Ele, mai-la questão que Ele mesmo logo propôs aos detentores dos poderes daquele tempo, continua a ser a mesma: - Poder O QUÊ e/ou ao serviço de QUEM?!... Porque todo o poder que não é serviço a quem dele necessita tende a ser tirania, tantas vezes disfarçada.

Uma boa lição do rei da Prússia... Ele era novito para o cargo. Mas, após a sua proclamação como rei, bem cedo mostrou que estava à altura. Porque, logo no dia da coroação, nos deu a todos uma boa lição que eu nunca mais esqueci. Mais tarde, conheci Martin Buber, o filósofo judeu da busca do NÓS, escondido na raiz de todo o Eu e/ou de todo o Tu. Encantei-me com esta saída sua: "O pior que pode suceder a uma pessoa é esquecer-se que é filha de um Rei". Mas vamos à história de Federico II - rei da Prússia. Tinha vinte e cinco anos quando foi proclamado rei. Depois da sua coroação, quando já a sós com a mãe, esta dirigiu-se a ele com o título de Majestade... O novo soberano cortou-lhe a palavra dizendo: - Por favor, mãe. Trata-me sempre por filho. Esse título tem para mim muito mais apreço do que a dignidade real.

Quando vejo tanta autoridade técnica, às vezes apoiada em tão pouca autoridade relacional com gente como a nossa, que esguicha deficiências por tudo quanto é sítio, todo eu tremo. Porque temo um Calvário sem transcendência (trans+ascendência), privado do poder/dever de puxar para a frente, para um Respeito Integral pela pessoa humana. Não posso ouvir um "eles não têm querer; vão para onde os mandar". Não posso. Porque são meus irmãos. Filhos do mesmo "Pai Nosso" - Deus Bom - que está no céu... Isso, que é a base desse "sonho louco" que todos trazemos dentro. Ser assim filho desse Rei Servidor dos mais humildes torna-nos merecedores de todo o respeito (de RE+spicio, saber ver o sacrossanto dessa Res Sacra que todo o ser humano é por nascimento).

Uma Boda falhada se não fora... Pego no relato daquela cena de Caná da Galileia. O narrador destaca que Maria — a Mãe de Jesus — tinha mesmo um coração de mãe. Sabia ver, pre+ver e pro+ver... Foi Ela a primeira a dar-se conta de uma delicada situação que se aproximava, para aquela família modesta: - Eles não têm vinho... E Jesus, mesmo ripostando um pouco, ao que parece, assim alertado por Maria, depressa se deu conta de que aquilo era mesmo verdade. Por isso logo apressou a sua hora e deu ordens: — Enchei todas essas talhas de água. E logo, depois de ver as talhas bem cheiinhas até esbordar, nova ordem: - Tirai agora e dai-o a provar ao chefe de mesa...

Paro-me no significado desta cena. Fixo-me no final do relato: Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou a desvendar os sinais com que Se ia revelando àqueles que começavam a acreditar n'Ele. Porque tudo isto são factos e "gestos simbólicos" que nos dão a conhecer aquele Deus presente em Jesus; bem como também nos dão a conhecer aquele Projecto que Jesus traz dentro de si para, pouco a pouco, no-lo ir revelando a nós. Era o Seu "sonho louco" - um Reino onde Deus pudesse também reinar como Rei Servidor d'os últimos, para que ninguém fosse mais pau mandado de ninguém... Todos pudessem ser tratados no respeito sagrado pela sua d'IGNI+dade de "filhos de um Rei Servidor".

Encanta-me sonhar que agora, passada a tempestade, os poderes envolvidos, como instrutores uns dos outros, andam a aprender a dialogar para, cada um no seu campo, saber "dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus" (Mc 12, 13-17). Sem rasteiras pelo meio. Isto é, não deixar que César venha destruir o que é de Deus nem criar-se nenhum "deus" que se julgue no direito de eliminar a César. Não senhor. Porque "na Casa de meu pai há muitas moradas" (João 12).

Um admirador