BEIRE

Saber cuidar das "coisas da Casa"…

COM+versar e/ou des+COM+versar?!... Desço do Calvário a caminho da Casa dos Rapazes. Já no 'portão de baixo', esbarro com o Jorge do campo. Está ali em missão para facilitar a vida à Fatinha (senhora da rouparia e afins), na hora da sua saída. - É para ela não ter de ir lá cima dar aquela volta toda -, explica. Chova ou faça sol, o Jorge cumpre religiosa e alegremente aquela missão que a si mesmo se impôs. Sem que ninguém o mande ou o impeça. Aqui em casa ele era rei e senhor. Como qualquer de nós em nossa casa. Ele é mesmo assim - uma transparente alegria de se sentir útil.

É um dos mais velhos desta Casa dos Rapazes. Está já a bater os sessenta anos. Um castiço. E um doce dos nossos... Verdadeiro ex-libris deste tipo de pessoas que temos por missão acolher nesta nossa Casa. Tão original e, por isso, tão incompreendida. Porque é muito fácil falar do que se não entende, ouço eu numa velha gravação de Pai Américo. Tão verdade isto! É muito fácil falar... O curioso é que o Jorge tem tanto de trabalhador e bom rapaz como de chato com'à potassa... No bom humor de P.e Baptista, para nós, o Jorge é a sexta chaga de cristo (...). Amenizada por aquele seu olhar, de um azul claro, sempre calmo e sorridente. Do mais puro que há no mundo. E por uma humildade que enternece a todos, acabando sempre por aceitar com um sorriso os nãos que tantas vezes temos que lhe dar... - Então, não pode ser. Está bem. Mas até pode ser que para outra vez já possa... - E lá vai ele à sua vida, sempre sereno e sem pressas. Como o Nána, também ele é bom para ir buscar a morte, dizemos nós...

Como lhe é habitual, se se cruza com um olhar, um sorriso ou algo que possa interpretar como uma 'porta aberta' para aproximar-se, logo ele começa uma 'conversa' que nunca mais acaba. Foi o que aconteceu naquele dia. Porque (num processo inconsciente que é peculiar desta gente), para ele o 'outro' é sobretudo uma oportunidade que a vida lhe dá para matar a sua insaciável fome de com+tacto... Por isso, quando apanha uma oportunidade, logo sai um infindável contar-se a si próprio em histórias, fantasias e supostos saberes com que preenche a sua solidão. Sempre que posso, lá lhe dou uma oportunidade. Não só para fazer os meus exercícios de paciência, que aqui tanta falta me faz, como para ruminar o funcionamento de uma mente deste tipo. São "pessoas com deficiência" mas que, mesmo sofrendo do que sofrem, sempre deixam soltar imensos flashs que demonstram que, realmente, "a alma é sempre perfeita". Porque essa é a nossa ponte entre esta amarração ao imanente e esta nossa fome de um transcendente que nos sacie de Razões de Viver, mesmo que a morte já ande a rondar a nossa porta...

— Não é justo, enganaram o nosso Jorge... Entre os seis que, naquele desumano seis de Dezembro, nos foram levados, o Jorge também lá foi na onda de promessas. (Ver O GAIATO, n.° 1951, de 22-12-2018. Aí, P.e Júlio conta a "insensatez dessa actuação"...). É que, obedecendo a uma "ordem superior" de que "não se vai levar ninguém contra vontade", a actuação que se seguiu veio dar razão aos velhos ditados da sabedoria popular: - Com papas e bolos se enganam os tolos... O cão e o menino vão para onde lhes vai o mimo...

Quando se começou a falar de que a Segurança Social poderia vir buscar os rapazes, o Jorge sempre dizia: - Se me levassem prò pé da minha mãe, eu até ia... Meu dito, meu feito. Ele perguntou se, disseram-lhe que sim, e ele foi. Todo contente. Esperançado. Com a sua bicicleta e tudo. Uma bicicleta que P.e Baptista lhe tinha oferecido pelo Natal, há uns anos atrás. Levou a bicicleta para, se calhar, a partir d'ó pé da mãe, poder vir visitar esta sua Casa onde sempre viveu desde pequenito...

Era o nosso "coveiro". Não ficava mal ao pé de qualquer outro profissional das nossas freguesias à volta. Desde que o acompanhássemos até criar uma rotina, depois aquilo era certinho como um relógio. Gosto de magicar este fenómeno humano que aqui é mais que visível e bem palpável - o homem é (também é, entenda-se!...) um animal de hábitos...

Que força a de um Amor de Mãe!... Olho a história do Jorge. Rumino este pormenor do seu registo de entrada: "A mãe é anormal. Está internada no asilo de... O menino vivia com a avó, num barraco em..., mas sendo esta tuberculosa e extremamente pobre. *** Frequentou a escola primária durante quatro anos sem aproveitamento".

Rumino. Com a história que tem, com as deficiências de que sofre, nada o impediu de vir a ser "um português de lei". Esse que sempre trabalha para merecer o que come. Ser um português de lei! - era o que Pai Américo sonhava para os seus rapazes que retirava das doenças da rua... Para se curarem em contacto com a Mãe Natureza e no COM+vívio dos irmãos que também andavam abandonados à mesma sorte...

O campo e as hortas eram o seu mundo. Mai-la sua especialidade de "coveiro". Com carreta e tudo, à maneira de antes... Porque, desde que entrasse numa rotina, aquilo funcionava perfeitamente. Dentro das suas deficiências, o Jorge era perfeito. Ainda que aqui seja PROIBIDA A ENTRADA A PESSOAS PERFEITAS... Essas só nos criam problemas, deixando as soluções para as "pessoas imperfeitas" que aqui dão o corpo ao manifesto...

Um admirador