BEIRE

Flashes do nosso quotidiano

Um doce retracto do nosso Nelito...

O Nelito é um bonito ex-libris desta Casa do Gaiato. Uma Casa do Gaiato, sim, mas muito especial... Já com 44 anos batidos, o Nelito é uma criança grande. Ora a espirrar ternura, a pedir a esmola de um bocadinho de atenção, ora a barafustar, aos berros, como um desalmado. Não sabe o que é o rancor. Tão depressa lhe vem uma fúria como logo lhe passa. É um trabalhador como poucos. Levanta cedo e, sem que seja preciso lembrar-lho, lá vai ele rampa a baixo, com o balde d'a lavagem da noite, a cuidar dos porcos. - E dos gatinhos, acrescenta, com voz meiga. Calça 35 e arrasta um pouco os pés, à pato... Mas não pode estar parado muito tempo. É dos poucos que sempre sabe arranjar que fazer. Mesmo que seja rapar as ervas do campo de futebol, debaixo de um calor de rachar. Se falamos com ele mais a sério, sempre repete o final do que lhe dizemos - como que em eco perdido nos montes... Gosta que falemos com ele, mas vê-se que não percebe nada para além da busca de respostas para as suas necessidades imediatas - sentir-se querido por aqueles que cuidam dele. Com uns óculos de vidro garrafa, quase não vê. Mas parece que fareja uma lâmpada fundida, uma torneira que pinga, uma fechadura que não funciona bem. E tudo serve para ir em busca do nosso com+tacto. Visual, auditivo, táctil, não importa. O que é preciso é um título para sentir-se gente que comunga com gente.

- (...) A minha carteira apareceu!...

Salvo os momentos em que dispara forte e feio, sem noção de incomodar a meio mundo, o Nelito é uma criatura calma e sorridente. Até mesmo com a concorrência... Se algum, como os porquitos em luta para agarrar a teta da mãe, lhe rouba o lugar na busca de atenção, ele fica ali parado. A sorrir. Como quem sabe esperar pela vez. Incendeia de forma quase automática com os intermináveis sermões do Jorge. Ou com o despacho do Paulo Jorge - o sportinguista, muito menos limitado do que ele... Mesmo desdentado como é, sorri a tudo sem complexos. E fica sereno até quando recebe um não. Chora, se somos duros com ele. Mas logo atira um amanhã, como eco que nos dá do não que recebeu. Esperança de que amanhã poderá ser um sim. Adoro este tipo de sabedoria-do-ser nestes miúdos (?) tão limitados como são. Vejo-os como mestres na arte de ouvir o Mestre Interior que nos habita.

Estes dias o Nelito andava infeliz. Com as mãos, sobre o peito, num jeitinho de quem parece que vai à comunhão, não perdia nenhuma oportunidade de se aproximar e gemer um perdi a minha carteira... Não culpava ninguém. Só os bolsos das calças - são pequenos; a carteira caiu e eu não sei dela. Não falava em dinheiro. Só a carteira - o seu tesouro...

Cada vez que vinha, atirava-lhe para o ar uma palavra de esperança, que ele repetia - ela vai aparecer... Passam-se uns dias e, de carteira, nada. Até que, agarrado ao computador, no escritório, ouço chamar - x'Abel, x'Abel! - Entra. Pelo tilintar das chaves, vejo que não consegue abrir. A sua motricidade fina é também muito reduzida. Levanto-me e vou à porta. Com a carteira na mão, brindava-me com um desdentado sorriso de orelha a orelha: - A carteira apareceu. Estava na piscina, em cima do muro. Apareceu. Festejei com ele. Tinha o dinheiro todo - umas moeditas escuras, a emoldurar uma ou outra amarelita, de 10 cêntimos... Dei-lhe os parabéns e fechei a porta.

Retomo o trabalho e sinto esta crónica a nascer dentro de mim. Percebi melhor a parábola da mulher que, dos dez dracmas que tinha, perdera um (Lc 15, 3-7). E senti que, também na Casa do Gaiato de Beire, o Reino de Deus está a crescer no meio de nós. Assim haja quem diga o SIM de Maria, naquele seu Fiat que abriu as portas à encarnação inacabada desse Deus que quer montar a Sua tenda no meio dos homens por Ele amados (Lc 1, 26-38). Ele quer. Faltam-nos é homens que se deixem embalar pelo sonho de um mundo mais humano. Essa é a matéria-prima que faz o milagre que leva ao nascer da Obra...

Devoção ao Santuário de Deus Vivo...

Volta e meia acontece. Gosto de estar atento para saborear o acontecer. E cuidar de fazer o que nos cabe para que a fonte não estanque... Pai Américo, ao falar dos nossos benfeitores, era bem claro: Não podemos deixar estancar a fonte. Como quem diz: precisamos de alimentar neles o gosto de dar; é outra forma de construir o Reino dos Céus. No meio de nós. Quando registo a sua presença, pessoalmente e/ou pelo correio, vejo n'eles/as outro tipo de construtores / continuadores da Obra da Rua ou Obra do Padre Américo. Com uma devoção muito particular pel'O Calvário. Talvez porque aqui O Crucificado aparece mais visível, indefeso, a pedir ajuda. A pedir d'essa coisa que nenhuma Segurança Social sabe nem pode dar. Porque o social - o Estado - não basta como RES+posta para matar estas nossas fomes de reciprocidade em comunhão amorosa. Não basta. Nem é da sua competência. A solidariedade é precisa. Mas não chega lá onde a falta do Amor / Caridade é a pedra de toque. Da Ciência do Coração só pode perceber quem tem coração (...) e sente que é ele que mata a gente. Pai Américo insistia: Mata, eu sei que mata...

(...) Ele é serralheiro. Chegou discretamente. Queria falar com quem representasse a Obra. Falou da sua devoção ao Calvário. E de como Deus o tem ajudado com isso. Uma vez, ainda no tempo das notas de conto, entregou cinquenta delas ao P.e Baptista. Foi de um trabalho que fiz para Angola e que me correu particularmente bem. Agora foi um trabalho mais pequeno, mas a coisa correu melhor do que eu esperava. Senti necessidade de dar um bocadinho. Deixou 250 € para aliviar a dor que há no mundo.

Um admirador