BEIRE

No rescaldo dos 130 anos de Pai Américo

A vida d'ele também depende de nós... Ontem, aqui no Calvário e, logo de seguida em Paço de Sousa, vivemos um dia grande. Foi o Dia da Obra - Dies Natalis de Pai Américo, o dia em que "a vida não lhe foi tirada, mas lhe foi mudada". Para que pudesse entrar no "seio de Abraão", "passar ao Pai", "deixar a terra, para viver no Céu". Tudo formas bíblicas e/ou de sabor cristão para nos falar daqueles que "por suas obras valerosas, da lei da morte se foram libertando" (Lusíadas, canto I, est 2).

Já lá vão 62 anos, depois da sua morte. Quase cento e trinta e um, depois do seu nascimento. Mas, ontem, nas capelas do Calvário e de Paço de Sousa, o acordar as doces "memórias do coração" deu para sentir bem aquele plus de vida que ainda pulsa no peito daqueles que se sentem fruto desse amor sem limites que inflamava o coração de Pai Américo. Aí esteve também uma Acção de Graças pelos 25 anos de sacerdócio do P.e Júlio, hoje o Director da Obra. Mai-la entrada para a Obra do, já nosso, P.e Fernando Fontoura, na Casa do Gaiato de Moçambique. Com um pedido de orações para que o Senhor da Vinha mande mais operários - a render os que estão cansados - P.e Telmo, P.e Baptista, P.e Manuel António, P.e Acílio. Todos já muito perto dos 90, que P.e Telmo já ultrapassou. E, logo depois, no refeitório e espaços recreativos, foi uma boa ocasião para sentir na pele todo o calor humano, de sabor divino, que ainda rescende das suas obras. Obras humanas de sabor divino - era esta a expressão de que Pai Américo botava mão para traduzir para nós o que o coração lhe dizia. Por isso é que ela - a Obra da Rua - ainda enternece a quem, no peito, traz um "coração de carne". Outra expressão bíblica usada por oposição a um "coração de pedra", próprio de quem já perdeu a sensibilidade própria de todos os corações, por se ir deixando "desumanizar"... Na falta de com+tacto adequado, falta de com+UNI+ão com os irmãos. Irmãos! Particularmente aqueles que eram os predilectos de Jesus de Nazaré, a cujo Santíssimo Nome Pai Américo dedicou a Obra da Rua. As crianças abandonadas, os indefesos, os sem ninguém, os doentes crónicos e/ou incapacitados que, aos olhos do mundo, são uma carga a mais que todos atiram ao mar do abandono...

Todas estas experiências, assim vivenciadas, podem servir-nos para perceber porque é que a vida d'ele - de Pai Américo - ainda depende de nós... Perceber como é que a "outra vida" (esse estar vivo mesmo depois da morte) está muito dependente de nós, a quem a lei da morte ainda nos mantém por cá... Com a missão de ir irradiando MAIS VIDA e VIDA EM ABUNDÂNCIA - Jo 10, 10.

Um "apaixonado" por Jesus - o carpinteiro... No último número d'O Gaiato, deixei-vos com a questão sobre qual teria sido o segredo de Pai Américo, nesse seu jeito de estar no/com o mundo que, no dizer da encíclica Alegria do Evangelho (n.º 131) era já "um dinamismo evangelizador que actua por atracção". Se nos dermos tempo de qualidade para ouvir o que chegou até nós gravado em fita magnética e/ou ler certas páginas que nos deixou nas colunas d'O Gaiato, depressa começamos a intuir qual a resposta. No tal encontro da U. Católica, de 21.07.17, referi que "no meio de tantas interrogações, há dias li isto sobre Jesus e o seu Evangelho: 'Jesus foi um homem profundamente religioso, pela sua intensa relação com Deus como Pai e pelo seu frequente recurso à oração. Mas a religiosidade de Jesus não esteve vinculada ao templo, nem aos rituais sagrados, nem aos sacerdotes, nem à submissão à lei religiosa. As suas preocupações não se centraram em nada disso. Muito ao contrário. Jesus viveu de um jeito tal que, no momento em que começou a actuar e a falar em público, entrou em choque com os responsáveis da religião - os sacerdotes, os teólogos e todo o beatério daquele tempo'.

Prossegui: 'O Evangelho é o grande relato de todo esse conflito, que terminou dramaticamente num tribunal, numa condenação e morte. Por isso mesmo há que enfrentar esta pergunta: - Como é que um homem, cuja vida terminou num confronto mortal com a religião, poderia ter fundado uma religião? O centro, o eixo, a essência na vida de Jesus, não foi o religioso e a religiosidade. Foi o humano e a humanidade. Em seu PRO+cesso de projecto humanizador, projecto de humanização crescente até ao que chamou de reinado de Deus. Isto é, uma humanidade em que o cuidado pelos que sofrem, o saciar as fomes que nos torturam e criar uma fraternidade (uma com+VIVÊNCIA!) tal em que ninguém se sinta de fora. E foi por isso, foi porque Jesus se pôs ao lado da vida e da felicidade dos seres humanos, foi por isso que o Evangelho (todos os evangelhos) centram toda a sua atenção na saúde daqueles que sofrem, na mesa posta para todos (especialmente os mais pobres) e num tipo de relação em que nenhum filho de Deus se sinta marginalizado. (...) E foi assim que Jesus deslocou o centro da religiosidade - que deixa de estar no "santo" mas sim no "humano". Por isso, acreditar no Evangelho é lutar contra a nossa própria (des)umanidade e tornarmo-nos cada dia mais humanos".

Este foi/é o seu grande "segredo"... Sei que há uma tese sobre Pai Américo - O Místico. Sei que há muitas teses sobre Pai Américo - Pedagogo. Sei que nenhuma me satisfaz. Penso que o segredo passa muito por aqui. Pai Américo não se centrou no servir a Igreja institucional, no servir a Deus, "teologicamente encarnado", mas tantas vezes desencarnado da vida. No seu jeito de buscar o silêncio e a solidão (como fazia Jesus, tantas vezes referido nos evangelhos) também Pai Américo se apaixonou por esse Deus que hoje conhecemos como o Deus revelado em Jesus de Nazaré - um Deus que é o Pai Bom, pai desse filho pródigo em animaladas... Esse Abba, mais mãe do que pai. Porque Pai Américo nunca se metia pelas teologias da "divindade de Jesus". Pai Américo entendeu foi a mensagem do Jesus da História, do Jesus Filho do carpinteiro.

Tal como Jesus, penso que também Pai Américo centrou o seu sacerdócio não no servir o templo, mas no servir os "filhos de Deus" mais desumanizados e/ou em risco de virem a sê-lo, por falta de condições de humanização. Penso que foi ISTO que, já naquele tempo, tanto me seduziu. Penso que é ISSO que, ainda em Julho de 2018, mais me seduz na Obra da Rua - encarnada neste Calvário / Casa do Gaiato de Beire.

Um admirador