BEIRE
A arte de saber ler O Gaiato
Fiquei calado, mas a ruminar. E ruminei, ruminei, ruminei. Porque os sentimentos de cada um merecem-me todo o respeito e compreensão. Depois, não sei por que associação de ideias, lembrei Pai Américo, em testamento aos Padres da Rua, a propósito do nosso jornal: (...) Escrevam como quem reza. Cá bem por dentro, passam crónicas e crónicas d'O GAIATO que foram para mim uma fonte de "Mais Vida e Vida em abundância". Em momentos decisivos da minha vida. Páginas d'O GAIATO que me marcaram e muito contribuíram para o meu, ainda inacabado, processo de amadurecimento. Crónicas de Pai Américo, P.e Telmo, P.e Baptista, P.e Carlos, P.e Acílio, P.e Horácio. E até certas "cartas dos leitores" e crónicas dos rapazes. Cada um de seu jeito, naquele dia, àquela hora, aquela crónica foi-me um marco a balizar o meu PRO+seguir, rumo ao meu hoje, aqui e agora. Por isso quero tanto a esta Obra da Rua, neste Calvário e nesta Casa do Gaiato. Por isso mesmo, enquanto for preciso e a vida mo pedir, eu não vou abandonar a barca. É-me demasiado evidente que, também aqui, "o reinado Deus" está em marcha. Para não mais parar.
De Pai Américo a Mahatma Gandhi. Sem saber como, de Pai Américo, passei a Gandhi. Um bocadinho mais velho que Pai Américo, mas ainda contemporâneos. Gandhi, o incansável lutador pelos direitos dos imigrantes índios na África do Sul. Lá para onde Pai Américo sentiu a célebre martelada que o arrancou das "coisas do mundo" para se entregar, de alma e coração, aos filhos da rua, em que já começava a ver Filhos de Deus, agrilhoados pelo desprezo social... Gandhi, nessa sua fidelidade a uma "crença inabalável no protesto pela não violência e pela tolerância religiosa". Fixo-me naquela sua arte de arrastar atrás de si multidões que, com ele, passaram a acreditar na "satyagraha" - a não violência. Uma resistência passiva contra as injustiças cometidas sobre o seu povo. Num dinamismo de tal modo humanizador que arrastava por atracção. E acontece que também Gandhi falou sobre a importância do escrever. (...) Escrever sim, mas tudo e só pela libertação dos oprimidos.
Caio na conta de que, por caminhos diferentes, ambos eles deram a sua vida pela implantação do mesmo "reinado de Deus" - um "santo", no Catolicismo e um "mahatma", no Induísmo!. Como que irmanados na mesma Fé, viram que a vontade d'o seu Deus é a felicidade dos homens por Ele amados. Em ambos a mesma tónica posta n'os últimos, os mais oprimidos pelo sistema social vigente.
Quando já no ano de 1946, Arand pediu licença para publicar aqueles "pensamentos", Gandhi replicou: "Mas o que é que têm assim de especial para te deixarem tão desejoso de os publicar? Se queres mesmo publicá-los, fá-lo, mas só depois da minha morte. Este tipo de escritos não costuma aparecer em vida do seu autor. Porque, quem sabe?! Pode acontecer que nem mesmo eu seja capaz de viver sempre em conformidade com o que escrevi! Mas, se me mantiver fiel a eles até ao último instante da minha vida, então, e só então, valerá a pena publicá-los".
Olho os Padres da Rua que, ao longo dos já sessenta e dois anos que Pai Américo partiu, têm dado vida a'O GAIATO. Olho os que também já partiram: P.e Luís Barata, P.e Carlos, P.e Horácio, P.e Zé Maria. Olho os que estão a precisar de quem renda os que estão cansados - P.e Telmo, P.e Baptista, P.e Manuel António e P.e Acílio. Olho os que ainda são Esperança de um novo dia que vai nascer - P.e Rafael, em Malanje; P.e Júlio, em Paço de Sousa; P.e Manuel Mendes, em Miranda; P.e Quim, a apoiar Benguela. E, já com o pé na soleira da porta, mais um sonho, para Maputo.
Olho e rezo: Senhor, eu sei que a Tua vontade é que nenhum dos Teus filhos se perca. Também esses que, sem família e/ou já órfãos de pais vivos, ainda abundam nas vielas da cidade ou nos recônditos das aldeias. Sei. Por isso, com as minhas pequenas tarefas, quero ainda ser útil ao mundo, fiel à tua chamada.
Um admirador