Padre Américo-Precursor do II Concílio do Vaticano

A sua leitura dos sinais dos tempos

Introdução

NÃO FALTAM TEMAS para falar do Padre Américo, de tal modo é rica a sua pessoa com a identidade e originalidade próprias, que denunciam os muitos dons com que Deus o dotou, e que ele soube fazer render como talentos recebidos para que deles muitos outros pudessem beneficiar.

O tema que preparei mostra como o Padre Américo não precisa de esperar por um Concílio ou por acontecimentos, ordens e orientações de fora. Ele foi realmente um precursor. Quando o Evangelho é alimento diário e se respira na vida de cada dia, nele se aprende a viver o Espírito de Cristo, o seu testemunho e o seu modo de agir com todos, com predilecção para com os mais pobres. Foi assim com o Padre Américo e com o seu carisma, um precursor do II Concílio do Vaticano.

Um carisma fundacional é sempre perene e inesgotável. Nem o tempo, nem as suas diver- sas aplicações o podem esgotar. Antes o ajudam a revelar-se como dom de Deus a favor dos seus filhos e de todos sem excepção. A fidelidade à Palavra, a realidade que se vive, as orientações do magistério vão mostrando como o carisma tem uma dimensão para além do que se diz e se pensa. Nem quem o recebe esgota toda a sua compreensão. O carisma é dom de Deus, e Deus vai-se revelando a quem acredita e vive de har- monia com a sua fé.

Vou fixar-me na capacidade do Padre Américo, que, vivendo já o espírito do II Concílio do Vaticano, que se iria realizar sem que ele o soubesse, soube viver com os pés no chão, discernir, com mestria, os sinais ou os acontecimentos que surgem em cada tempo no seu caminho, se estendem para além dele e o levam a agir com o Espírito de Jesus. É este um campo em que o Padre Américo foi verdadeiro mestre de vida e educador exímio de uma fé comprometida. Aí o temos, porque os tempos o recomendam, a con- vidar-nos a seguir igual caminho de amor afectivo e efectivo.


OS SINAIS DOS TEMPOS, como sabemos, designam uma expressão que o II Concílio do Vaticano trouxe ao de cima e de que hoje muito se fala. A leitura dos "sinais do tempo", a que o povo com a sua experiência e sabedoria sempre deu especial atenção, Jesus a tomou como tema para alertar os seus ouvintes a prestarem atenção aos sinais de Deus no tempo e para que os soubessem ler, apreciar e discernir à luz dos novos critérios que Ele pregava e deixava expressos na sua vida, bem como na mensagem evangélica.

São estes "sinais no tempo" ou sinais dos tempos que o II Concílio do Vaticano sublinhou (GS4) como sinais de revelação e de apelo de Deus, para que, lidos e acolhidos, permitam à Igreja e aos seus membros, realizar melhor e com mais objectividade a sua missão no mundo, em favor de todos os homens e mulheres de cada tempo e lugar.

Este alerta estava nos objectivos do Concílio, como bem o vincou João XXIII. A presença da Igreja no mundo e o seu diálogo com o mesmo não podiam passar ao lado desta exigência, que se havia transformado em urgência. A distracção do mundo, ainda que por motivos espirituais, foi atitude frequente na Igreja. Foi assim durante séculos e parece que só se acordava desta modorra e rotina, quando surgia um cristão animado do Espírito de Cristo a comprometer-se, por inteiro, em caminhos novos de evangelização, de ardor apostólico, da resposta que o Povo de Deus e a sociedade necessitavam.

Tinha razão João XXIII, desvalorizando a fuga mundi a pretexto de santificação e de sal- vação pessoal, quando chamou a Igreja a um novo tipo de presença no mundo criado, mundo este que Deus ama e quer salvar. Recordemos Francisco de Assis, João de Deus, Vicente de Paulo, Frederico Ozanam, Teresa de Calcutá e Américo de Aguiar, todos heróis de caridade, gritando a favor dos não amados e dos esquecidos das comunidades cristãs e do clero, o mais alto detentor de responsabilidade.

DE FACTO, A IGREJA MENOSPREZARA este seu dever pelo hábito de séculos de falar de cima para baixo, de se enredar nos seus problemas e no seu prestígio, julgando o mundo e pensando nada poder aprender do que nele se passava, por se ter ligado ao poder civil, pela sua identificação com os ricos e poderosos, segundo a opinião pública! A Igreja havia-se transformado num movimento para dentro, quando a sua natureza, como muito bem assinalara o teólogo Karl Rahner, é um "movimento para fora". Mudara-se o "Ide" de Jesus Cristo aos apóstolos, motivados pelo anúncio da Boa Nova do Reino, pelo "Vinde" da Igreja, ao encontro muitas vezes dos seus próprios interesses.

Assim, ela não percebeu o desabrochar e o surto imparável da cultura moderna. Passou-lhe ao lado a industrialização, não soube ler o fenómeno das migrações internas que a mesma provocava, perdeu a classe operária, não viu o labéu que sobre ela caía de aliada aos ricos, manteve o povo na ignorância bíblica, multiplicou inimigos dentro de si, quando neles devia ter encontrado preciosos colaboradores... Calou os profetas e, numa palavra, tornou-se cada vez mais sociedade clerical e menos Povo de Deus ou povo de irmãos.


É CERTO QUE SEMPRE, ao longo do tempo, o Espírito suscitou corajosos e esforçados rema- dores que se esfalfaram remando contra a maré, que O acolheram e por Ele se deixaram conduzir. Ficaram na história como santos de renome que perdura, como fundadores de famílias religiosas e de movimentos apostólicos, nascidos para responder a necessidades a que era preciso responder, como bispos inconformados e como teólogos corajosos. Ficou também na história o povo crente, que não perdeu o sentido de Deus e soube lutar e partilhar, apoiado no que acreditava.

Com todos o II Concílio do Vaticano aprendeu para poder assim, na expressão de João XXIII, purificar o rosto da Igreja das impurezas do tempo.

QUANDO ME FOI PEDIDA UMA REFLEXÃO sobre o Padre Américo neste seu jubileu de 125 anos, não podia deixar de o colocar entre os "violentos de Deus", como chamou João Paulo II (RH 11) àqueles que, em todos os tempos, assumiram, na sua pessoa, a missão de "revelar Cristo ao mundo, ajudar cada um para que se encontre a si mesmo n'Ele... Ajudando, assim, as gerações contempo- râneas a conhecer as imperscrutáveis riquezas de Cristo, pois elas são para todos e cada um dos homens e constituem o bem de cada um deles". Isto o escreveu o Papa em 1979.

Vi o Padre Américo identificado, como testemunho antecipado, nas páginas de Paulo VI sobre a Evangelização do Mundo Contemporâneo (EN 1975), com o modelo de evangelizador apre-sentado pelo Papa, ao mesmo tempo, testemunha e mestre.

AO RECORDAR OS DADOS BIOGRÁFICOS do Padre Américo, podemos ver que, antes de estes Papas haverem dito ou escrito palavras tão luminosas, ele viveu estas realidades no confronto diário com a missão que descobriu como querer de Deus.

Nascido em 23 de Outubro de 1887, Deus o levou em 16 de Julho de 1956, antes, portanto, da eleição de João XXIII, em Outubro do mesmo ano e antes, logicamente, do anúncio do Concílio Ecuménico, em 25 de Janeiro de 1957. Tudo isto nos leva a concluir como ele, fiel ao Espírito Santo que o conduziu, soube antecipar as grandes linhas do Concílio, sem que tenha, sequer, ouvido falar deste. Como se sentiu impelido, pelo amor a Deus e ao próximo, a criar e a dar alma e solidez à Obra da Rua, entre 1940, tinha então 53 anos - ano da criação da primeira Casa do Gaiato -, e a sua morte com 69 anos incompletos, em plena corrida a favor dos mais pobres.

As grandes obras, porém, antes de se poderem ver com os olhos do rosto, fazem caminho no coração de quem, pela fé, as sonhou e realizou.

A PARTIR DA SUA ORDENAÇÃO SACERDOTAL, em 28 de Julho de 1929, tinha já cerca de 42 anos, iniciou a sua peregrinação, sempre pelas estradas abertas do amor efectivo: Sopa dos Pobres, em Coimbra, famílias em dificuldade, hospitais e cadeias, colónias de campo, Lar dos ex-pupilos dos reformatórios. Foram dez anos de auscultação pela presença, conhecimento e experiência crescente dos problemas sociais mais prementes. A primeira Casa do Gaiato, aberta em Miranda do Corvo, não é obra de um acaso ou de uma emoção repentina. Muitos passos foram dados até lá chegar. Muitas misérias lhe passaram pelas mãos e pelo coração a clamarem amor e resposta. A muitos desabafos e dores deu ele atenção e lugar na sua vida.

Um coração como o de Cristo, capaz de amar a todos, de servir a todos e de sofrer por todos, mesmo para uma vida sensível e aberta aos outros, é obra paciente do Espírito. Foi o Espírito de Deus, qual oleiro divino, que o foi moldando, purificando, dando resistência e solidez, abrindo sempre mais horizontes, de modo a perceber que o amor não tem fronteiras, que "a medida de perfeição do amor é amar sem medida", como deixou dito S. João da Cruz.

A experiência de Deus, que capacita para realizar a Obra de Deus no mundo, adquire-se nos caminhos concretos de uma vida comprometida, que testemunha, com actos e atitudes, o que se professa com palavras.

AS PEQUENAS INTRODUÇÕES a cada capítulo do seu maravilhoso livro Obra da Rua, já com cinco edições, recordam os passos de uma via-sacra longa e viva:


"De como eu vi um tipógrafo doente na trapeira de uma casa; e outros, noutros lugares";

"De como nasceu a ideia das Colónias de Campo do Garoto da Baixa";

"Do que se fez e do que se disse nas citadas Colónias";

"De como nasceu a ideia da Casa do Gaiato";

"De como se implora o socorro dos homens de ter";

"Quem somos, para onde vamos, o que queremos".

Sem comentário, que a palavra fala por si e pelo mistério que comporta, abre um capítulo, apenas com a palavra iluminadora: "Calvário".

E, para que não haja nem dúvidas nem confusões sobre quem é o sentido da Obra e de todas as Casas e iniciativas, Padre Américo se encarrega de o deixar escrito:

"Cristo Jesus é a Pedra Angular."


VOOS MAIS DISTANTES lhe borbulhavam no coração. Era o clamor sempre incessante de Angola e Moçambique, que ele ia partilhando com todos e até com os gaiatos, e que encontrou eco no coração deles e de muita gente generosa. Através de muitos, até dos gaiatos das outras casas, Deus lhe falou e lhe deu ânimo e aval para arrancar. É enternecedor o poema do Faneca que pede, com lágrimas, que o deixem ir para Angola "ensinar as criaturas pretinhas que também são filhos de Deus...".

Toda a Obra é o escrever e o narrar de um poema de vida a nascer, a crescer, a dar frutos, a fazer bem, sempre e onde fosse preciso.

ONDE ESTÃO, é tempo de nos perguntarmos, as intuições conciliares do Padre Américo, animadas pela leitura e pelo discernimento dos sinais dos tempos?

Padre Américo foi peregrino que não se cansou de procurar o que Deus queria dele. É esta a missão da Igreja conciliar: uma Igreja que caminha e procura. Deus lho revelou, a seu tempo. Viveu as experiências dolorosas de um fora da sua casa. Fez a escola de Francisco de Assis e bebeu do seu espírito. Saboreou e aprendeu, na leitura da vida do Poverello, que Deus se esconde, por vezes, até por detrás das negas dos homens da Igreja e das incompreensões de quem chama loucos aos que, na sua vida, tomam, por convicção, seguir e viver o Evangelho a sério.

Porém, só esses podem propor o caminho para o seguimento de Cristo, pois que a sua vida é tri- lhar esse caminho. Uma verdade de que andava arredada muita gente da hierarquia clerical, fechada em palácios e só recebendo o ar da rua, quando descia ao encontro de festividades e honras. Mas sempre resta alguém que é capaz de abrir a porta a quem procura, alguém que privilegia os critérios evangélicos, em detrimento de muitos critérios humanos, pobres e empobrecedores. Entre estes um Bispo cordial [D. Manuel Luís Coelho da Silva, de Coimbra] que o acolheu e acreditou na sua capacidade de ser um padre à maneira de Jesus Cristo e dos Apóstolos. A porta do coração de Deus sempre se abre aos pobres que o são de espírito, e, por ela, se tem acesso, pelo caminho do Filho, a um coração que guarda todos os segredos, que um dia serão luz, ao arrepio de profecias fáceis.


10· A RIQUEZA ESPIRITUAL do Padre Américo levou-o a ver as pessoas com os olhos de um Deus que é Pai e, assim, nos deixou a mensagem de que, se ninguém é já obra perfeita e já acabada, também "não há rapazes maus". Nem rapazes, nem pessoas adultas, no-lo mostrou ele, de mil maneiras, com o seu eloquente testemunho de vida. Todos amados infinitamente, todos chama- dos a sentirem-se amados, todos detentores de uma missão, à sua medida. É esta a visão da fé que nos faz perceber o Povo de Deus e a urgência do Reino, como um povo de irmãos, de iguais na dignidade, de todos comprometidos no mesmo mandamento do amor, e no mesmo projecto de edificação desse Reino que urge. Ninguém excluído, todos com lugar na sua comunidade. Aquele grito de que "cada comunidade cuide dos seus pobres!", que é senão um grito de exigência de uma coerência consequente de um reino de irmãos que se constrói?

11· EM 1979, OS BISPOS DA AMÉRICA LATINA numa grande assembleia do CELAM, em Puebla, no México, presente o Papa João Paulo II, acordaram


num famoso documento intitulado "Para uma opção preferencial pelos pobres". Tratava-se de fechar uma polémica dura entre duas facções sobre a Teologia da Libertação, de modo a realçar a importância da justiça social. Depois deste documento, a opção pelos pobres passou a ser falada por muitos dentro e fora da Igreja. Já então se podia ler na Constituição sobre a Igreja (LG 8c):

"Tal como Cristo consumou a redenção na pobreza e na perseguição, também a Igreja, para poder comunicar aos homens os frutos da salvação, é chamada a percorrer o mesmo caminho. [...] Cristo foi enviado pelo Pai para anunciar a Boa Nova aos pobres, a proclamar a libertação aos cativos, procurar e salvar o que estava perdido; do mesmo modo, a Igreja ama todos os angustiados pelo sofrimento humano, reconhece mesmo a imagem do seu Fundador, pobre e sofredor, nos pobres e nos que sofrem, esforça-se por lhes aliviar a indigência e neles deseja servir a Cristo."


Paulo VI falou, corajosamente, de uma Igreja que é pobre e para os pobres.

O Padre Américo antecipou-se ao II Concílio do Vaticano, porque o modelo de Jesus Cristo, servo e pobre, estava já gravado no seu coração e a orientar a sua acção. A opção preferencial pelos pobres era, de há muito, a sua opção de vida.

Não resisto a trazer aqui uma página cheia de realismo e sofrimento:

"São casarões tenebrosos, cheios de tocas sombrias, onde a miséria se aninha. A escada por onde se trepa nunca foi varrida, que ninguém se julga nessa obrigação, e a locatária também não. Ela arrenda chão estreme e paredes nuas; cobra por dia, adiantadamente, à cautela; e oferece os seus serviços na taberna que tem e dirige pessoalmente, nos fundos do labirinto - tudo comodidades para os seus inquilinos! Sucede, às vezes, dentro do mesmo quarto, encontrarem-se grupos diferentes, cada um com seu tributo - a gente paguemos quinze tostões! Não são famílias e parece que sim; são bandos de seres humanos que fogem das suas terras por via da fome e só encontram miséria. É de a gente arrepiar!

De dentro de um dos meandros sai uma mulher desgrenhada, com duas crianças atrás de um pequenino de lábios colados ao peito, a chorar de fome - fontes secas! E logo a seguir sai um homem e mais outro homem e de outra toca, outra gente - cartas do mesmo naipe.

- Nós viemos do Porto por essas terras abaixo, a cantar, e agora empenhámos a guitarra - olhe. É a cédula do penhor.

Baixei os meus olhos tristes, afeitos a estas vistas, e considerei qual não deve ser a força da fome, para obrigar a tamanho desespero. E quis saber a razão por que haviam saído do Porto e trocado por Coimbra a sua terra natal.

- Oh meu senhor, lá é muito pior!

Foi a cantadeira que assim falou, anunciando, sem dar fé disso, uma grande verdade [...]. Noutro dia fui ao Porto e terminei as minhas voltas às cinco horas da tarde. Tinha uma hora para o Rápido e gastei-a pelas ruas, seguido de uma chusma de garotos, em cata de pão. Ande, senhor abade: ali mais acima há outra padaria. Andei e nenhuma delas tinha pão - nem uma!"

A opção pelos pobres, assumida pelo Padre Américo, não é poesia, nem mero sentimento. É grito que não se cala mais. São dele estas palavras que nos interpelam a nós, padres, e nos levam a um confronto, ontem e hoje:

"O padre é um excomungado nas zonas de miséria. Não se acredita nele nem nos seus bons ofícios. O quê, padres aqui a estas horas! Cheira a morte. E em cima, nas trapeiras do quinto andar: O senhor enganou-se na porta; eu sou pobre.

Dá pena! Perdeu-se a verdadeira noção do sacerdócio cristão e o lugar que melhor calha a todos os sacerdotes de Cristo - a casa e a sorte dos desgraçados."

Dir-se-á que hoje é diferente. Quem dera que o fosse! Os pobres do alto da Conchada, onde se alojavam em tocas cem famílias da cidade, não são hoje os mesmos. Mas os pobres, de ontem e de hoje, pobres de todas as formas de pobreza e até os pobres envergonhados, abundam nas nossas cidades... Quem opta por eles, e por eles organiza e dá a sua vida, e consigo, a vida das comunidades cristãs que anima e a que preside?

12· O PADRE AMÉRICO sempre entendeu que evangelizar é promover, antes de mais, as pessoas, o que comporta apoiar o seu crescimento integral e o desenvolvimento das suas capacidades naturais e adquiridas. Ele viu bem como tinha razão ao pensar assim, quando pôde ver os desamados e abandonados da rua tornarem-se pessoas dignas e cidadãos responsáveis! A sua Obra, que ele quis se chamasse da Rua, foi uma especialização diária na capacidade de transformar crianças abandonadas, quais farrapos desprezados, em adultos socialmente comprometidos, de dar sentido à vida dos portadores de maiores deficiências, de proporcionar casa digna a quem nunca a teve... Casas do Gaiato, Calvário, Património dos Pobres, a sua Obra, vivida e sofrida com paixão e zelo inexcedível.

A mesma intuição o levou a procurar, entre os gaiatos que beneficiaram da ajuda de outros mais velhos, que também eles fossem obreiros do mesmo projecto, a favor dos mais pequenos que iam chegando. Não veio o Concílio a dizer que todos somos chamados a ser ajudadores dos irmãos, para que se multiplique o número dos que ajudam? Não é este modo de ser equipa dos rapazes, com os rapazes, para os rapazes - o meio eficaz de fazer comunidade, aí mesmo onde a vida decorre? Muita gente pensava e continua a pensar que, mantendo do pobre a dependência a quem ajuda, se garante o êxito naquele que é ajudado. Assim, muita gente ficou a meio cami- nho do seu crescimento e, por vezes, recuou de novo para caminhos sem regresso, porque não foi ajudada a crescer, como pessoa independente e responsável juntamente com outros, provados por iguais situações de desprezo e de desvalorização social.

Este espírito não é apenas das Casas do Gaiato, mas, também, do Calvário onde os muito limita- dos são ajudados a descobrir e a gozar a alegria de serem úteis a outros com maiores limitações.


13· BENTO XVI, no seu livro A Infância de Jesus, ao reflectir a influência necessária na vida da Igreja do mistério da Encarnação do Filho de Deus, escreveu:

"Faz parte do tornar-se cristão este sair do âmbito daquilo que todos pensam e querem, sair dos critérios predominantes, para entrar na luz da verdade sobre o nosso ser e, com essa luz, alcançar o justo caminho."

Sem deixar que esta palavra passasse sem a acolher para meu estímulo, ao lê-la veio-me à mente o Padre Américo. Ele soube sair do âmbito do tempo e dos critérios reinantes, para viver na luz do que era e do que Deus lhe pedia.

Padre Américo soube viver as relações Igreja/ Mundo com olhos de uma fé comprometida, com os pés no chão, com o conhecimento objectivo da realidade, com a consciência da missão. O caminho foi o mais difícil, a que só um coração, atento e sensível, é capaz de dar atenção e valor: o caminho, para si mesmo tornado irreversível, dos mais pobres.

Certamente que foi o seu amor a Deus e a sua fé que o capacitaram para se comprometer numa obra cheia de dificuldades, sem nunca desistir, nem se arrepender do caminho escolhido e generosamente andado. A leitura dos seus escritos continua a ser, hoje como amanhã, o caminho para lhe ler o coração e apreender o sentido das suas opções. Ele foi realmente alguém que voltou às origens do Cristianismo, à vida das primitivas comunidades cristãs, ao propósito de tornar o amor do Pai visível e efectivo. Soube passar ao lado de honras e de privilégios. Soube continuar o seu rumo, quando muitos o consideravam um louco sem futuro. Nunca perceberam, como o Padre Américo, que o lixo da rua se pode tornar ouro de muitos quilates, ou, como dizia Paulo, que Deus se serve do que não presta para fazer valer o que presta!

Mas não foi isto tudo que João XXIII tinha em mente ao convocar ao Concílio? Não foi neste sentido que o Papa jogou todos os dados para que voltássemos a ter uma Igreja Serva e Pobre, que espelhasse o rosto de Deus Pai misericordioso, e pudesse ser, deste modo, uma Igreja Mãe e Mestra? Só esta Igreja poderá honrar o seu Fundador, que lhe confiou a sua missão e lhe abriu o caminho, por Ele próprio andado.


14· TAL COMO A IGREJA PEREGRINA, santa, mas sempre a necessitar de purificação, também a obra do Padre Américo, portadora da riqueza do seu carisma, do testemunho comprometido da sua vida com o Evangelho e da riqueza inovadora das suas intuições, nada perde em se confrontar com o tempo.

O Padre Américo entendeu que se devia libertar da sujeição aos poderes políticos públicos e dispensar o seu dinheiro. Foi nesta independência, deliberada e consciente, que a Obra da Rua ganhou raízes e se afirmou como um bem nacional e eclesial. Agora, porém, o fascínio dos políti- cos por um Estado Social que tudo deve resolver, centralizador e avesso à colaboração, qualificada e testada dos privados e das instituições, vem-se traduzindo, em relação à Obra da Rua, em pressões, desconhecimento, marginalização, desdém, quando não mesmo em atitudes de condenação e desprezo. Não faltam casos recentes a comprová-lo, por parte de serviços e servidores do Estado. Certamente que a colaboração, aceite e oferecida pela Obra ou a ela proposta, na sequência de exigências e de normas oficiais, não a pode levar a abdicar daquilo que é património intocável, como o carisma educacional e a pedagogia do Padre Américo. Uma relação mútua respeitosa da Obra da Rua poderá ajudar instituições estatais e particulares a ganhar um novo espírito, e a própria Obra a beneficiar de possíveis contributos válidos e a sentir novos desafios sociais. A realidade - pensemos no número dos Padres da Rua e na sua idade e, também, na crise por que passa o país - obriga à abertura e à criatividade, que sempre se pode fazer sem perda da identidade.

Interrogo-me muitas vezes sobre como é que hoje o Padre Américo reagiria à colaboração e como, a favor dos pobres, manteria a sua independência num mundo onde a acção politica social governativa é centralizadora e ideológica!

15· AO TERMINAR, deixo a palavra a quem dela conseguiu fazer vida. Palavra escaldante, incó- moda, interpeladora, dita pelo Padre Américo aqui em Coimbra, que pede a quem a escuta se deixe contagiar:

"Vai fazer dez anos no dia 19 do mês de Março que eu pedi licença ao então Prelado da Diocese de Coimbra para me deixar ir cuidar dos pobres, que para outra coisa não prestava, por virtude de uma doença que ao tempo me consumia; e ele disse-me que sim. Não houve requerimento, nem cunha, nem nomeação. Foi um operário chamado à vinha do Senhor, pelo Senhor, em muita dor e aflição, a fim de melhor poder ajudar e compreender os aflitos. Deus escreve direito por linhas tortas. Comecei por uma toca no Largo da Trindade, onde habitava uma mulher prostituída, com quatro filhos de outros tantos pais, a qual mulher falecia pouco depois à minha beira, roída de doença e do pecado, a pedir perdão e a perdoar! Em questão de miséria social, a minha estreia foi perfeita e o meu serviço bem acabado. Desde então até à data, tem sido um constante desfiar de contas numa cadeia interminável de cenas que a vida tem; a tal ponto que eu sinto dentro do meu peito, dia a dia, a alegria imensa de uma Obra que fica, em lugar da amargura de uma vida que acaba.

Não repares de eu falar aqui na primeira pessoa, que o faço com letra minúscula; quando a gente lida e sente de perto a multidão dos Estropiados, fala assim no singular, a ver se outros operários vêm para a Vinha do Senhor, no plural, seja qual for a terra, idade ou condição. Vem hoje que não terás mais em tua vida de fazer contas de multiplicar, como fazem os tristes mortais que trabalham com os outros tristes algarismos. Não terás, porquanto quem multiplicou o pão do Evangelho multiplica, igualmente, o pão que tu dás ao Pobre: a ti compete somente distribuí-lo."

E, por fim, esta seta de fogo:

"Ai! Que se a experiência das coisas divinas não fosse, como as demais, um facto individual e intransmissível, eu havia de passar para o teu peito tudo quanto no meu arde, para tu também arderes. Desculpa a forma pessoal do meu dizer de hoje. É falar de apaixonado. É por teu amor que o faço; quereria que tivesses a mesma paixão. Vem!"

A gente nova, os seminaristas de Teologia, os padres, novos e menos novos, precisam de conhe- cer o Padre Américo, como precisam de o conhecer os leigos cristãos mais atentos e as comunidades paroquiais para que se tornem mais sensíveis aos pobres que nelas vivem.

O padre ou é um apaixonado, por Cristo e à sua maneira, dominado pelos amores que ocu- param a sua vida, ou não vale a pena ser padre. O Padre Américo assim no-lo diz, de modo bem eloquente, com a sua vida e a sua Obra.

António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro.