História da Casa do Gaiato de Setúbal

Por estes dias (1 de Julho de 1955) vai-se proceder à inauguração da Casa do Gaiato de Setúbal que só tem o inconveniente de ficar a uns oito quilómetros da cidade, mas no mais é qualificada. O edifício propriamente dito, de grandes linhas e boas divisões, poderia facilmente conter duzentos rapazes se a nossa experiência não nos tivesse já ensinado que mais de cem na mesma Casa é um erro. Além do edifício temos uns dezasseis hectares de cultura de arroz e um bocadinho de mata e todos os anexos que dizem respeito e são precisos a uma Obra da natureza da nossa.
O reverendo padre José Flausino vai tomar conta, sem contudo deixar Alcácer do Sal, aonde temos um Lar de Rapazes resineiros. Munido de uma furgoneta, facilmente percorre a distância que vai de uma Casa à outra.
Lisboa, Porto e Coimbra fornecem um rapaz de cada Casa para dar começo à fundação. São as chocas dos que vão aparecendo. E, desta forma, começando por mui poucos, podemos chegar ao fim do ano com uma população de quarenta deles. Prometemos dar uma grande preferência ao Albergue Distrital da Polícia e vamos cumprir. Não podemos dizer que seremos exactos; mas que temos uma grande vontade de acertar, isso sim.
A força do convite que nos foi feito, por ter vindo de tão alto, deu-nos coragem de aceitar o encargo. Primeiramente é o falecido senhor Arcebispo de Évora (D. Manuel Mendes da Conceição Santos) que aceita a vocação de um sacerdote, o desliga dos serviços da sua diocese e faz entrega dele à Obra da Rua. Em segundo lugar, temos o Governo Civil, a Câmara e a Polícia, que se deram as mãos sem discrepância e resolveram as dificuldades. E, finalmente, temos o Terreiro do Paço. Isto é o maior elogio que se pode fazer aos métodos e ao sistema de uma Obra. Isto significa a condenação implícita do Asilo.
Cada vez é maior o número de estudiosos que vêm da América e da Europa até nós. A semana passada foi um sacerdote do Canadá e outro da Bélgica. Sabem da existência da Aldeia dos Rapazes, em Paço de Sousa. Trazem recado superior para observar. Alguns tem havido que se apresentam acompanhados de altos funcionários do Governo. São homens dados a Obras do rapaz abandonado em suas províncias. Dizem-nos aqui da semelhança dos sistemas. Ternos ouvido declarar, humildemente, a superioridade do que vêem, humildade e verdade são palavras iguais. Além destes que se apresentam, outros que não podem vir, mandam questionários e pedem relatórios. Em tudo se vê a quinta, o aglomerado de casas distintas, a soberania do rapaz, as papas de milho, o leite a correr, a ausência de adultos, a falta de secretaria numa Obra de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes. Isto também é a condenação implícita do Asilo.
Aqui há tempos pedi licença ao porteiro e entrei em determinado Asilo de uma cidade. Começo a ver. Enquanto não souberam quem eu era, tudo ia muito bem; mas apenas se descobriu, não me permitiram mais um passo; o senhor Director, com as desculpas do estilo, acompanhou-me até à porta! Em uma outra cidade entrei e fui mais feliz. Só à despedida é que disse quem era. Pois bem; além de muitas ordens de serviço existentes no estabelecimento, naquela hora fez-se mais uma: «Não se deixa entrar ninguém sem ordem expressa da Direcção». E aqui temos mais uma condenação!Resumindo: A Autoridade apelou para nós e não foi buscar a clássica Mesa para reger o educando de Setúbal. Os curiosos estrangeiros que procuram fazer mais e melhor ao Desajustado das suas terras, chegam a Portugal e procuram-nos. Mais: Se tivéssemos estatística, contaríamos por milhares, milhares e milhares o número de visitantes; e não há canto nenhum que não esteja aberto e aonde eles não possam meter o nariz. Mais ainda: Somos a Obra que menos custa ao tesoiro da Nação. Obra de onde têm saído os rapazes mais afoitos. E, finalmente, aquela que o povo mais ama. Esta é a última e a mais importante das condenações.
Só o peso de situações criadas e interesses particulares são capazes de continuar a obra dos Emparedados.

in Obra da Rua